domingo, setembro 19, 2010

Quando o canto é reza


Bom, é até vergonhoso dizer que sou membro deste blog sem nunca ter postado, mas acho que chegou a hora, até porque sinto falta de um toque de MPB por aqui - espero que os leitores também! Mas de modo geral, posso dizer que estou muito feliz com o "papel" (rá! sacaram?) que o blog vem desempenhando até aqui.
Sem mais delongas, parto pro objeto desta postagem: o novo e belíssimo álbum da cantora potiguar Roberta Sá em parceria com os excelentes músicos do Trio Madeira Brasil, entitulado "Quando o canto é reza". O álbum é uma homenagem ao grande compositor baiano Roque Ferreira, autor de sucessos da música brasileira imortalizados por nomes como Zeca Pagodinho que gravou a provavelmente mais famosa canção de Roque, "Água da minha sede".
A parceria de Roberta com o Trio Madeira Brasil, que não é de agora, rendeu frutos muito gostosos de se provar; o CD inteiro é carregado da poesia popular mais pura e ainda assim apresenta uma sofisticação ímpar, sem sequer por um segundo tornar-se "música difícil". Pelo contrário, é bem fácil escutar e gostar da música desse quarteto! A combinação dos talentos realmente faz do CD um afago nos ouvidos.
O álbum inicia com "Mandingo", canção que eu conhecia na excelente versão de Pedro Luís e a Parede, onde ela tinha ares mais pesados. Aqui a música não perde sua força, o que mostra o amadurecimento vocal de Roberta, que por vezes era suave demais no início da carreira. Os solos maravilhosos do Trio Madeira Brasil completam a história do "Nego Mandingo", em uma série de referências à cultura afro-brasileira. Seguimos ao som de "Chita fina", música de amor bem mais leve que a anterior, onde se anuncia algo das composições de Roque Ferreira e que pode ser visto por todo o CD: versos simples e belíssimos, falando a língua da gente que ele realmente quer retratar com uma competência que não deixa nada a dever a ninguém e com construções de imagens que são um convite a poetar com ele também. Essas belas canções de amor polvilham o disco, e tais elementos são encontrados também em "Água da minha sede" (em uma versão incrível que acentuou a poesia original da música), "Xire" (que tem um dos versos mais bonitos na opinião de Roberta: "seu namorado serei, serei, serei, sereia")e "A Mão do Amor" (que tem as metáforas e imagens entre as mais inteligentes do álbum, na minha opinião).
A fé e adoração ao povo simples e à cultura afro-brasileira também são elementos fortes nas composições de Roque; além de "Mandingo", são a temática principal também em "Zambiapungo", "Orixá de frente" e "Menino". Friso aqui "Orixá de frente", uma canção extremamente terna, inclusive quando sugere possíveis relações entre o senhor e seus escravos ("quando a preta samba, nos olhos de ioiô é tanto querer bem/bem que iaiá queria, só por um dia, ser preta também"). É lindo ver o carinho e deferência com que o compositor trata os temas afros.
O cotidiano da gente do povo também é marca registrada. "Cocada", "Tô fora" e "Festejo" representam muito bem isso. O compositor consegue ir do humor ao lírico em segundos, sem se perder. Excelente. Para encerrar, temos "Água doce" e "Marejada", duas grandes sucessões de imagens e comparações que exprimem os mais profundos sentimentos de Roque.
Claro que essas temáticas não são estanques, e isso talvez seja o mais delicioso: ver como ele entrelaça tantas em uma só música, o que faz de cada uma delas uma composição única. Tudo isso embalado pela voz de seda da Roberta Sá e pelos incríveis músicos do Trio Madeira Brasil fazem desse CD um resgate a altura da obra de Roque Ferreira e um item que vale muito a pena conferir para os apreciadores do gênero. Recomendo!

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